I
Se o
rapaz souber ler - argumentava triunfantemente o idiota - assim que chegar à
idade, às duas por três, fazem-no jurado, regedor, camarista, juiz ordinário,
juiz de paz, juiz eleito. São favas contadas. Depois, enquanto ele vai à
audiência ou à câmara, a Cabeçais, daqui uma légua, os criados e os jornaleiros
ferram-se a dormir a sesta de cangalhas à sombra dos carvalhos, e o arado fica
também a dormir no rego. E ademais, isto de saber ler é meio caminho andado
para asno e vadio.
E citava
exemplos, personalizando meia dúzia de brejeiros que sabiam ler e eram mais
asnos e vadios que os analfabetos.
Quem a
tal respeito questionava muito com o Roberto Rodrigues, de Val-Redondo, era o
seu compadre, um reitor do concelho de Gaia, padrinho do rapaz. A calúnia
malsinava este clérigo, mordiscando-lhe a reputação com o prolóquio - fazê-los
e baptizá-los e, valha a verdade, nunca o anjo da inocência se viu tão em
pancas para desmentir um acidente casual que parecia rico trabalho da natureza,
um exemplar perfeitíssimo de hereditariedade morfológica; e não desmentia nada
- que é o pior - quando o anjo candidíssimo da pureza conspurca as suas asas em
imundícies das alcovas conjugais.
II
O menino
Artur parecia-se tanto com o padrinho que até, nuns mexericos protervos, as
línguas naturalistas da freguesia lhe chamavam o padre-pequeno, e ao pai
legítimo chamavam-lhe o cuco-grande. Chalaças brutas de aldeia que,
transplantadas para a cidade e rendilhadas de estilo figurado, podiam ser
citadas como exemplos de humorismo português - uma especialidade que se dá na
nossa terra como as batatas; e nós, em vez de exportarmos, importamos batatas
do Val de la Mula e espírito do Figaro e do Chat Noir.
O
vigário era daqueles sítios, bacharel em Teologia, pregador romântico, com
bastantes letras e temperamento calidamente sanguíneo. Um vulcão. Contavam-se
explosões desse temperamento vesuviano, que repercutiram outras explosões,
precedidas de fenómenos que a obstetrícia não desconhece e nos dispensam de
acreditar nas gerações espontâneas. Creio que nestes dizeres transpus os
limites da candura nas asas do Pudor - o moderno pudor alado com p grande, que
pertence à volateria rara, de arribação, como as garças-reais e os
mergulhões-do-norte.
III
O certo
é que, afinal, explodiram também contra o padre dois ou três lavradores de uma
intransigência bestial; e então o teólogo, Hilário Tavares, aliando a prudência
à sabedoria, saiu da terra e foi apascentar um rendoso rebanho nas cercanias do
Porto.
O
lavrador Rodrigues de Val-Redondo não foi um dos dois ou três refractários à
civilização das aldeias. Permaneceu leal amigo do padrinho de seu filho; e,
todos os anos, por ocasião da festividade do orago, hospedava quinze dias o
compadre que pregava gratuitamente o sermão; e assim, no decurso de dez anos,
graças ao desinteresse do seu talento parenético, granjeara o pregador
reabilitado a benquerença dos seus conterrâneos.
Dez anos
contava também o Arturzinho, filho único do lavrador abastado, e não ia ainda à
escola. Contra o costume dos rapazes, era ele quem pedia ao pai que o deixasse
aprender, porque tinha vergonha dos outros moços que estudavam a doutrina
cristã pela Cartilha.
IV
A
poderosa razão que o lavrador Roberto Rodrigues opunha para não mandar ensinar
a ler o filho, era - que ele pai também não sabia ler, e mais arranjava
lindamente a sua vida. Esta vinha a ser a razão capital, reforçada por outras
subalternas e praticamente bastante persuasivas..
Não
ousava o pai refutar impiamente a conveniência da doutrina cristã; mas alegava
que bom católico era ele, e mais nunca aprendera a doutrina pela Cartilha. E,
com uma grande jactância, desenrolava torrencialmente tudo o que sabia,
misturando os Pecados mortais com as Obras de Misericórdia, e os Inimigos da
alma com as Virtudes teologais. Ainda assim sabia muito mais do cristianismo do
que aí qualquer bacharel formado capaz de inventar uma religião.
Acolhia-se
o rapaz ao padrinho como empenho para o pai. A luta durou três anos, até que
enfim o lavrador consentiu que o filho fosse aprender a ler na companhia do
compadre.
O
discípulo era hábil, e o mestre educava-o com amorosa vigilância, um zelo
extremoso, aligeirando-lhe a tarefa das lições com palestras pedagógicas
adequadas a facilitarem ao moço a inteligência dos pontos difíceis. Assim lhe
ensinou português, latim e francês no espaço de oito anos, ao fim dos quais o
padre Hilário morreu no vigor da idade.
V
Tencionava
o reitor mandar o afilhado para Coimbra e formá-lo em Direito à sua custa,
visto que o lavrador se recusava pertinazmente a dar as mesadas. - Quero em
casa o rapaz (dizia nas cartas); doutores que os leve o diabo!
O
padrinho não pudera legar-lhe o património, porque era vitalício e reversivo a
sobrinhos; deixou-lhe, porém, tudo quanto podia: algumas dúzias de moedas em
cruzados novos, a égua, muito boa estampa, um colmeal com 55 cortiços, os
aparelhos de pesca e caça, muito valiosos, e a sua livraria composta de
clássicos latinos e portugueses, alguns sermonários franceses, e as obras
completas de Eugène Sue e A. Dumas. Também tinha o Cavalheiro de Faublas, e o
Vítor ou o Menino da Selva, obras de sensação, impressionistas.
VI
Foi
Artur Rodrigues para a companhia dos pais. A mãe revia-se pasmada nos jeitos
afidalgados do filho, a bizarria da sua roupa feita no Porto e na última moda,
a lindeza das suas falas, as graves maneiras que impunham respeito aos rapazes
da sua criação. O pai achava-o assim a modo de pronóstico, muito patarata com
as raparigas, não se importando com as coisas da casa, rindo-se das palavras
grosseiras dele, chamando besta a toda a gente. Que não dava importância aos
parentes, e olhava de revés e com engulho para os velhos trastes da casa. Que,
um dia sim outro não - queixava-se o pai - montava a égua que lhe deixara o
padrinho, e ia para a Vila da Feira ou para o Porto sem pedir licença. Que das
6o moedas que herdara ninguém em casa lhe vira as cruzes de doze vinténs, e que
lá as andava derretendo bem sabia o diabo por onde. - Não to disse eu? -
apostrofava à mulher - não te disse eu, Balbina, que o rapaz se faria brejeiro
e vadio assim que aprendesse a ler? Agora aí o tens; pega-lhe cum trapo quente.
Aquele está pronto, sim, senhores! Um malandro acabado! Ele faz de conta que eu
cá estou a trabalhar como burro para lhe aumentar a casa. Anda por lá na
gandaia; mas quando se lhe acabar o arame do padrinho, que venha cá. Está
servido o tal janota de... - E falava estercorosamente como Vítor Hugo escrevia
em certo livro.
VII
A mãe do
janota limpava os olhos no avental, e sentia-se por dentro roída de certos
remorsos. Receava grande tormenta iminente na sua vida como castigo de qualquer
delito que as vizinhas sabiam melhor do que nós. Andava cismática, a pensar em
fazer uma confissão geral, penitenciar-se para desarmar as cóleras divinas.
Ora, as
60 moedas do defunto reitor esgotaram-se no fim de seis meses.
No
decurso deste meio ano, Artur Rodrigues Tavares (apelidava-se Tavares, em
memória de seu saudoso padrinho) namorara-se de sua prima Doroteia, do Crasto,
uma rapariga esvelta, alva de neve, com o rosto rosado que parecia uma taça de
creme em que boiasse uma romã aberta. Era a flor dos concelhos de Fermedo e
Arouca, amada a um tempo por lavradores ricos, pelo juiz eleito, por várias
autoridades, pela junta de paróquia - amavam-na todos, incluindo bacharéis
formados. Mas o juiz eleito, o José da Silva Rato Júnior, era o mais resistente
rival que se antepunha ao Artur Tavares.
VIII
Rato
Júnior havia sido o predilecto de Doroteia até ao momento em que ela viu o
primo Artur de luzentes botas de água com prateleira, cavalgando a nervosa égua
que fazia piaffés e curvetas, obedecendo à pressão dos joelhos do cavaleiro. Um
deslumbramento!... um fulminante corisco de amor, afogueado na forja da
ciência; porque Doroteia sabia ler, e relia pela quarta vez com muitos suspiros
os Amantes Desgraçados, traduzidos do francês por Aluna, e Arminda e Teotónio,
novela portuguesa por Eliano Aónio. Não obstante a corrupção alastrada por
estas leituras, a enfeitiçada moça chegou a fazer promessas importantes à
Senhora dos Remédios, se a curasse da sua paixão pelo primo. O Rato fazia-lhe
uma pena que era mesmo despedaçar-se-lhe o coração. Ele já a tinha pedido ao
pai, o João Canastreiro, que prometeu dotá-la com 200$000 réis e mais os
cordões da mãe que pesavam 25 moedas.
O juiz
eleito não era rico; mas tinha uma tia amigada com um juiz do Supremo Tribunal,
muito velho, e esperava herdar dela quinze mil cruzados, para cima que não para
baixo, em terras no concelho de Fermedo que o desembargador lhe deixava em
testamento à tia. Além disso tinha um irmão administrador do correio, outro era
tabelião, um primo vereador; e outro primo, que estudara no Porto para
arquitecto, era substituto do juiz de Direito e despachava autos. - Boa família
a do José Rato; e ele tão relacionado que um governador civil de Aveiro, pernoitando
em Arouca, o mandara chamar para a cavaqueira.
IX
E um
noivo, nestas circunstâncias excepcionais, bastou um relance mágico de olhos,
uma negaça e talvez um beijo perturbador para o volatilizar do íntimo de
Doroteia, e enlouquecê-la tão sem remédio que a pobre rapariga imaginava-se
vítima de bruxedos.
Ora o
primo Artur tinha 18 anos e era um guapo rapaz.
Parece-se
muito com o pai - dizia a Rosa do Bentes, no adro, quando ele saía da missa.
- Com
qual pai? - perguntava a Josefa do Tamanqueiro.
- Com
qual pai há-de ser? com o padre Hilário, que eu conheci quando era novo como
agora é o filho. E o padre escarrado - tal qual, e não lhe conheço outro pai
que eu saiba.
Num
grupo à beira, cochichava a Maria
Leitoa:
- A Rosa
do Bentes está alanzoando que conheceu o padre quando ele era novo... Ora se
conheceu...
- E de
mais... - confirmava a Brígida Ruiva; - reparem vocês na cara da filha dela, na
Apolinaira, a cara do Sr. Arturinho e do padre João como quem a pintou.
-
Calaide-vos, calaide-vos! - interveio a tia Luísa da Loja Nova. - O padre já lá
está a contas com Deus, e vós aqui à má-língua! É um grande pecado mexer nas
cinzas dos mortos, ouviram, suas desbocadas?
X
Não foi
baldada a admoestação da tia Luísa. O grupo das más-línguas amnistiou o morto,
e desforrou-se nos vivos. Contaram então que o José Rato andava como a cobra
que perdeu a peçonha; que o casamento estava desfeito, porque a Doroteia, desde
que o primo lá fora de visita, aquilo foi como a doninha com o sapo; que
parecia mesmo uma cabra doida de cio; não falava senão no seu priminho, e
tivera o ousio de dizer à mãe que não queria o .Rato, e seria mais fácil malhar
a um poço que casar com ele. O juiz eleito, quando soubera isto, esteve muito
mal da máquina interior, com flatos; depois, botara as unhas a uma espingarda
para ir matar o Artur, de Val-Redondo; que custara muito a ter mão nele; e que,
afinal de contas, lhe pegara uma febre que o tivera de cama; agora já andava
por seu pé, mas estava muito escanifrado, um escaleto, e não ia longe.
No grupo
houve quem esclarecesse pontos menos lúcidos da notícia. Uma vizinha e amiga da
Doroteia afirmou que o Artur entrava, noite morta, por uma janela em casa do
Canastreiro, e saía ao romper do dia com espingarda e cinturão de caçador.